Vivi em missão desde Outubro de 2010 até Outubro de 2011. Fora do País que me viu nascer e crescer, durante um ano. Um ano de trabalho e principalmente de novidade e intensa vida social. Festas, encontros, jantares, convívios, viagens, tudo o que me passava pela cabeça e fosse encaixado nos tempos livres. Fascinei-me! Senti-me um pássaro fora da gaiola! Tudo me era permitido e quanto mais eu me disponibilizava para as farras e os amigos, mais era “venerada”.
O trabalho fazia-se bem, os mais “chegados” estavam sempre disponíveis... Criei a minha própria imagem: comunicativa e moderna, sem compromissos afectivos e sem preconceitos. Isso, facilitou-me a vida em todas as suas áreas.
Mas... regressei às origens, depois de um ano fora! foi o descalabro da minha vida pessoal. Perdi valores, perdi o amor da minha vida, perdi o respeito pelos amigos mais sinceros.
Esqueci-me do essencial… a dita missão empurrou-me para envolvimentos catastróficos… fui fraca… vi outros perderem-se sem sentido, mas eu estava embriagada com a liberdade que nunca tive. Liberdade???!!! Agora digo: triste libertinagem!!!
Vida de missão! Há que descobrir tudo! Logo percebi que para ter sucesso teria de criar um perfil adequado: não ter passado, nem tão pouco futuro, viver o presente e arrastar-me na onda frenética do presente que se faz “à la gardére” para agradar... e ter futuro no "bando"...
O presente foi feito de “esquecimentos” inquietantes, só a superficialidade e a hilaridade contavam… humanismo? Não existiu! Só fachada! Humanismo?! só aquele que sirviria para fazer uma boa imagem… comungar de certas intimidades?! sim... isso ficava bem e melhorava o perfil exigido.
Nos primeiros tempos da minha estadia como "internacional" (que bom sentir-me "internacional", o meu despresível ego inchou-se de vaidade!), ainda mantive as evidências de que tinha compromissos humanos e afectivos no meu País. Depois isso passou a ser uma mentira que eu mantinha comigo própria… as solicitações eram muitas e eu já não tinha mais disponibilidade anímica para manter a chama com o meu companheiro... homem inteligente, culto, sensível...
A hipocrisia e a falsidade imperou nas minhas atitudes, e vivi bem com isso, porque o ambiente social e os convívios sem fronteiras me agradavam exageradamente. Era aí que eu afogava a solidão que queimava o meu coração. Ao mesmo tempo, sentia-me honesta, não querendo sujeitar o meu marido à humilhação de ser visto como “objecto de gozo”... Ele não merecia isso, decididamente.
O nosso amor nunca tinha sido beliscado, ele era um cavalheiro e um companheiro. Tínhamos alicerces firmes e sabíamos o que queríamos da vida… estávamos a construir um futuro lindo, passo a passo, sem pressas, mas com muito amor e dedicação recíprocos.
Contudo, esta afectividade forte não resistiu, quando confrontada com mudança de mentalidade que ocorreu em mim... os privilégios (internacional não é uma coisa banal) os prazeres mundanos longe de todos os olhares familiares (tudo nos é permitido, ninguém questiona a nossa vida pessoal)...
A harmonia que eu tinha, antes desta experiência de trabalho, harmonia que parecia resistente a toda a lixeira humana e a todo o aproveitamento emocional, adoeceu gravemente. Os prazeres afectaram-me o carácter que fazia parte da minha psicologia, os meus olhos ficaram cegos pela novidade de possuir e viver mais experiencias novas, perdi o brio de mim e fiquei arrogante como se tivesse o mundo e as pessoas aos meus pés aceitando o que os meus caprichos determinassem.
A gritaria interna do meu desassossego feriu os meus ouvidos e silenciou a minha voz, mas principalmente silenciou a voz do meu marido que jamais iria sujar-se nem tão pouco envolver-se na minha promiscuidade emocional. Troquei-o por ilusões falsas, envenenei o meu carácter...
Gritava mais alto em mim a expectativa conhecer gente diferente. Além disso, éramos dois companheiros separados pela distância de milhares de Kms. Passou a manifestar-se em mim uma indiferença sentimental que me pareceu natural. Percebi que havia insatisfação e tristeza da parte do meu marido, mas isso não me preocupava. Os outros colegas eram tão desprendidos e tão disponíveis! Eu tinha de ser como eles! Achei que isso era o modo de vida ideal, e que o meu marido só tinha que aceitar. Dinheiro não faltava, e viria mais a cada contrato renovado. Nunca ganhei tanto na minha vida, e isso afectou a minha forma de viver. Até arranjei um namorado e voltei a apaixonar-me. Foi bom para o dois!
Fiquei com o vírus das missões instalado nas minhas entranhas, e um desassossego desprezível na minha mente.
Regressei ao País, sem sensibilidade, emocionalmente doente. Regressei e percebi que teria de voltar às rotinas habituais, o antigo trabalho, a monotonia do dia a dia... mas o que me dói mais é ter de admitir que perdi um grande companheiro.
As organizações internacionais estão-se a afundar numa corrupção organizacional, mas principalmente devido à corrupção comportamental, é a partir do elemento pessoal que começa essa mesma corrupção.
São essas mesmas as pessoas que antes de serem os actores da corrupção organizacional, são os actores da sua própria corrupção pessoal… comportamental. O importante deixa de existir, por falta de condições e, para vencer, basta esquecer o passado e as origens, entregando-se à superficialidade e às paixões oferecidas no momento.
A negridão do prazer fácil e competitivo faz-se presente no quotidiano de cada missão. A mentalidade do mercenarismo impera e passamos a viver em função do dinheiro e do curriculun que vamos fazer.
Foi esta a triste realidade vivida na primeira pessoa. Perdi um companheiro admirável, feri-o sem escrúpulos, pura leviandade, mas principalmente, feri-o para estar naquela onda... Eu tinha de ser uma mulher moderna, livre, disponível como as outras.
Perdi também bons amigos, mas principalmente perdi as raízes e o respeito por mim… Mas, foi tão viciante aquela nova vida, longe de todos os olhares conhecidos, que ainda persisto em manter na memória os privilégios, o conforto, os prazeres, as festas embriagantes e um vazio perturbador que me fere merecidamente…
Tenho de reconhecer que as organizações internacionais não irão sobreviver nestas realidades, com gente facilmente seduzida pelo dinheiro e pelo social, como eu fui. Só sobreviverão se tiverem presente nos seus estatutos que o comportamento íntegro dos seus elementos são uma mais-valia e, que cada um leva consigo a sua história pessoal, os seus afectos, os seus entes queridos, os seus parceiros de vida...
Foi a voz da minha consciência, para que conste… desculpem-me o incómodo.
Florbela Amaral